Illusions

domingo, abril 30, 2006

CASANOVA

À medida que a doença e a solidão lhe anunciavam a iminência do fim, Giacomo recordava-se insistentemente de uma pequena gata amarela que, nos tempos da infância, vinda não se sabe de onde, dormia no seu colo. A avó e uma cigana, que com ele se dava e que o ajudara a curar-se de constantes hemorragias nasais, tinham dito que não devia ter gatos, uma vez que, além de lhe agravarem as perdas de sangue, eram representações físicas do demómio, mas Giacomo nunca se mostrara disposto a dar-lhes ouvidos, até porque era livre e rebelde como os gatos de que tanto gostava.

Certo dia, a gatinha amarela sussurrou-lhe ao ouvido:
- Não és capaz de imagimar, meu querido Giacomo, como eu gostava de ter partilhado contigo uma outra vida, quando era, não uma gata, mas uma bela princesa do Oriente. Imagino que teríamos sido muito felizes, porque gosto do teu cheiro, do toque dos teus dedos e do contacto com a tua pele branca e macia. Por favor, nunca deixes de ser felino ao longo da tua vida, porque eu, esteja onde estiver, nunca deixarei de velar por ti.

E a promessa foi cumprida. Muitas vezes, o aventureiro Giacomo Casanova conseguiu salvar-se da morte porque o sobressalto de um gato ou de uma casa, em casas onde não devia estar, o avisou da proximidade de um marido traído ou de uma mulher despeitada e ferida por um inesperado abandono. A sua alma de gato era salva pelos alertas incessantemente lançados por outros gatos.

Ao longo da vida, como um gato que espalha promessas de amor pelos telhados do seu bairro, ele andou de cidade em cidade, de país em país, numa frenética busca do amor impossível, sempre apaixonado pela própria paixão, mulher volátil e intocável que nunca conseguiu deitar no seu leito de promessas incumpridas. E mesmo quando, em Paris, inventou a lotaria, tê-lo-á feito não só na esperança de enriquecer depressa, mas também com a ilusão de que lhe saísse o número mágico capaz de lhe franquear o tesouro de um amor total.

Nas derredeiras semanas de vida sentiu, talvez em estado de delírio, que a gatinha amarela da sua amada Veneza, que nunca aceitou reconciliar-se cm ele, nem na vida nem na morte, o visitava com frequência no leito onde ardia em febre. E não podia dizer ao certo se tinha a forma de gata ou de bela e exótica princesa oriental.

Antes de expirar, sentiu que ela se aninhou sobre o seu peito, tentando aquecê-lo, no frio tumular daquele castelo checo onde se auto-exilara por já não ser capaz de amar, nem física nem espiritualmente.

E da boca da linda gatinha amarela saíram, serpenteantes, estas palavras balsâmicas:
- Vai em paz, Giacomo, Cavaleiro de Seingalt, pois não hão-de faltar ocasiões nem outras vidas para que possamos encontrar-nos de novo e nos amarmos sem limite, amantes eternos que afinal somos.


Excerto do livro " Amados gatos "
de José Jorge Letria